domingo, 11 de julho de 2010

Faroeste

Não que daí advenha grande mal ao mundo, mas creio pertencer à última geração que brincou aos cowboys e aos índios. O primeiro filme que vi num cinema, vi-o num cinema a sério (daqueles com plateia e balcão, e várias centenas de lugares) e foi uma obra inenarrável e boçal, exemplo típico da agonia do western. Tratava-se de “Trinitá, o cowboy insolente”.
Adorei! Eu, o meu irmão mais novo e o meu avô, que nos levou! Nós e a torrente de gente que encheu o cinema nessa noite! Uma torrente que comia pipas (sementes de girassol) e não pipocas. Que assobiava, gritava e aplaudia a cada murro, salto e pirueta de Bud Spencer e terence Hill, e que, no entretanto, provocava os vizinhos do lado e de baixo, atirando as cascas das pipas. A saída do cinema deu-se em apoteose, com profunda satisfação e imersos numa maralha que dispersou a pé, ou montada em motorizadas de escape livre e de outra artilharia. Tudo num enorme banzé, próprio do Portugal pós-PREC e ainda pré-CEE e pré-ASAE .
Mas os "Cóbois" há muito que haviam entrado no meu vocabulário e imaginário. Creio que mesmo antes de os meus pais comprarem a primeira televisão, e de eu começar aí a ver os filmes do John Wayne e companhia, já brincaria com o meu irmão mais velho, com pistolas idealizadas a partir de ramos secos, e arcos e setas manhosas criadas por nós.
O que nos levaria a nós, moçanhada mais ou menos europeia, em fins do século vinte, a imaginarmo-nos no imensamente distante Faroeste norte-americano? O nosso século dezanove não foi livre de peripécias e de foras-da-lei. Também tivemos uma guerra civil, então. E bandidos que assaltavam carruagens. Mas o facto é que ninguém, que eu me lembre, teve a ideia de brincar aos liberais e miguelistas (de que aliás nunca ouvíramos falar), nem ao Zé-do-telhado. Só o facto de não termos, na serra algarvia, índios e de o nosso Cinema ser incapaz de fazer filmes que nos empolgassem, poderia explicar a capacidade de nos imaginarmos numa envoltura que nos era totalmente alheia, pensei durante muito tempo.
Foi com grande divertimento que, há uns anos, quando via um documentário sobre a diáspora açoriana, descobri que afinal o Faroeste até tinha qualquer coisa a ver connosco. Para meu espanto descobri que o criador de gado do Novo México que denunciou a localização de Billy "The Kid" ao xerife Pat Garrett era português. Que um tal John Phillips, batedor do exército da União (que conseguiu furar o cerco que dois mil índios Sioux, Cheyenne e Arapahos mantinham a Fort Phil Kearny, e garantir a ajuda que salvou noventa soldados) era na realidade Manuel Filipe Cardoso, nascido no lugar de Terras, Lajes do Pico, a 28 de Abril de 1832. Descobri que outros nomes, como John Vey ou John Enos, não eram senão a denominação americana de João da Cunha Veiga e João Ignácio d’Oliveira. O distante Oeste não tinha sido distante o suficiente para impedir que muitos portugueses, açorianos na sua maioria, lá chegassem fugidos da miséria nacional e em busca do ouro e do sucesso. Fizeram-no à sua maneira, no nosso modo Low Profile. San Francisco desenvolveu-se alimentado por hortelões portugueses.

Mais recentemente, navegando no sítio da Biblioteca do congresso dos Estados-Unidos, deparei-me com um nome estranhamente português - Solomon Nunes Carvalho.
Pesquisei um pouco. O nome era, de facto, português. Homem de negócios, pintor, fotógrafo e inventor, Nunes carvalho nasceu na cidade de Charleston, na Carolina do Sul, com direito e deveres de cidadania. Descrevia-se como um republicano ( enquanto ideal de governo, não enquanto opção partidária). Pertencia porém a uma comunidade que sempre definiu como portuguesa, e que dessa definição estranhamente não abdicou, apesar da forma como a nação de origem a tratou. Nunes Carvalho provinha de uma família da elite cultural, comercial e técnica judaica portuguesa, das que, em vagas sucessivas, foram sendo forçadas ao exílio e ao desterro em lugares tão variados quanto Amesterdão, Londres, Salónica, Istambul ou o Caribe.
É o facto de pertencer a uma comunidade com peso cultural, e económico, que explica a capacidade de fazer prevalecer um nome tão impronunciável para um americano, como é o apelido Carvalho ( é relevantemente divertido ver como, em vários textos de língua inglesa, os autores se sentem na obrigação de colocar, entre parêntesis, a forma correcta de o pronunciar- a qual, segundo eles, será qualquer coisa como cárvaio). Ao contrário do grosso da restante diáspora portuguesa, a família de carvalho não era analfabeta , nem fugia da miséria e da fome. Não estivera, como muitos milhares de emigrantes, à mercê da ignorância e prepotência de funcionários que anglicizavam a eito nomes portugueses, italianos, polacos ou gregos.
Solomon Nunes Carvalho notabilizou-se como fotógrafo daguerreótipista , e foi, tão somente, o primeiro homem a fotografar os imensos espaços, as fabulosas paisagens, e as figuras do Oeste Americano.



 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Solomon Nunes Carvalho, auto-retrato, cerca de 1850
imagem obtida aqui

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