terça-feira, 25 de junho de 2013

ONTOS- Probóscide de Mosca

John William Draper,
Microfotografia de Probóscide de mosca,
Daguerreótipo, E.U.A., 1850
imagem obtida aqui


John William Draper, cientista norte-americano nascido em Inglaterra, foi dos muitos que tactearam a descoberta da Fotografia, investigando processos foto-químicos. Ultrapassado por Daguerre e Fox Talbot que, em 1839, tornaram públicos os processos por si descobertos, foi no entanto um personagem fundamental dos progressos que rapidamente ajudaram a transformar o limitado daguerreótipo ( fotografia de exemplar único, executado sobre chapa metálica) num processo fotográfico mais fiável e prático.
Melhorou substancialmente a sensibilidade dos materiais fotossensíveis, reduzindo os tempos de exposição, e especula-se que terá sido o primeiro a fazer conseguir fazer retratos fotográficos com esse método.
Associado a Samuel Morse, inventor do telégrafo e introdutor da fotografia nos Estados Unidos, criou o primeiro estúdio profissional dedicado ao retrato fotográfico, em 1840 e em Nova Iorque. Esta sociedade durou porém poucos meses, dado que a Draper as aventuras empresariais não entusiasmavam, optando depressa por retornar às suas investigações. Para ele, o desafio da fotografia era sobretudo a descoberta. E foi aí bem sucedido, melhorando ainda mais os processos fotoquímicos, e alargando o campo da fotografia para a astronomia e a microscopia.
É sua a imagem acima, um daguerreótipo obtido através de um adaptador, por si criado, que acoplou uma das pesadas câmaras da época a um microscópio, tornando pela primeira vez visível para todos o mundo do ínfimo, tomando como objecto a probóscide duma mosca, o pequeno apêndice bocal que o insecto usa para se alimentar.


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quarta-feira, 19 de junho de 2013

Um escândalo

Capa da LIFE de 16 Setembro de 1966

Em meados de Setembro de 1966, uma capa da revista americana LIFE, uma referência mundial no campo do fotojornalismo, causou escândalo. Nela aparecia a actriz italiana Sophia Loren, então no pico da sua popularidade, fotografada durante a rodagem do filme "Matrimonio all'italiana" ( Casamento à Italiana, na versão portuguesa; Matrimônio à Italiana, na versão brasileira) de Vittorio De Sica. A razão da polémica prendia-se com os traje envergados, que se resumiam a umas cuecas e a uma combinação particularmente transparente. Uns quantos leitores afirmaram o seu repúdio por tal exposição da beleza feminina e alguns assinantes chegaram mesmo a cancelar o seu contrato.

Hoje podemos olhar com alguma risibilidade para o acontecimento, desconfiando da pública afirmação de virtuoso desagrado e do impacto do cancelamento de assinaturas na saúde financeira da revista, que sobreviveria décadas a esta controvérsia, e reparar nalguns factos interessantes.
Um deles é que a notícia que motivava esta capa não era propriamente a actriz ou o seu trabalho, mas antes o fotógrafo. Alfred Eisenstaedt, nascido na Alemanha mas entretanto naturalizado americano, fazia parte da equipa da LIFE desde que esta se reformulara, nos anos trinta, no sentido de se tornar uma revista em que a imagem fotográfica era central. Por essa altura, Alfred apresentava a exposição "The face of our time" e era em sua honra que a imagem de Sophia Loren, feita três anos antes (e que não fora algo de publicação), era chamada à frente.
A escolha desta fotografia em particular, de entre tantas apresentadas na exposição, não era inocente e enquadrava-se um pouco na linha editorial da revista, que várias outras vezes recorrera à sensualidade de vedetas femininas na capa (fizera-o com Claudia Cardinale, dois meses antes) para cativar os leitores. A polémica não terá,  por isso, sido inesperada.

Quase quarenta e sete anos depois, algumas coisas mudaram. A LIFE deixou de existir como revista, mas o seu nome sobrevive na designação duma corporação empresarial de media americana, a Time Life, que continua a tirar proveito da fama e do espólio da extinta publicação. O site life.time.com é por ela mantido e, em associação com a Google, podemos aceder a parte do seu espantoso arquivo fotográfico. Podemos, por exemplo, ver algumas outras imagens da sessão, de 1963, em que Eisenstaedt captou a fotografia de capa, embora apenas a preto-e-branco e não na provável cor original.

Alfred Eisenstaedt, Sophia Loren, 1963,
imagem obtida aqui


Alfred Eisenstaedt, Sophia Loren, 1963,
imagem obtida aqui


Alfred Eisenstaedt, Sophia Loren, 1963,
imagem obtida aqui

Alfred Eisenstaedt, Sophia Loren, 1963,
imagem obtida aqui
Outra coisa que se alterou profundamente foi o star system, hoje muito mais fragmentado, por um lado, com poucas verdadeiras vedetas, e hegemonizado, por outro,  na medida em pouca figuras de origem não anglo-saxónica se conseguem erguer para um estatuto de reconhecimento mundial. E a própria substância das estrelas parece ser outra. O estatuto de celebridade não passa tanto por mérito e qualidades naturais, quanto por uma máquina de fazer celebridades. Ohando-se para Loren e para muitas das celebridades da era das modelos feitas actrizes, do silicone e do photoshop, olha-se para duas coisas radicalmente distintas. Na primeira, o fulgor da sua imagem era reflexo de uma força da natureza; nas outras, a imagem é a sua única força, e não advém da natureza.

E por último, a naturalidade captada na rodagem de um filme de enredo picante nos anos sessenta só pode fazer-nos sorrir perante a actual omnipresença de um exibicionismo boçal, de reality show, em que nada  verdadeiramente choca.
É caso para dizer que é uma pena, aliás, que é um verdadeiro escândalo que já não haja escândalos.

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sexta-feira, 14 de junho de 2013

ONTOS -Alguns membros da família Scarabaeidae

Os artrópodes, sejam eles aracnídeos, insectos ou outros, são por norma recebidos com pouco apreço no interior da cultura ocidental. A repulsa, o nojo e até o medo constituem o leque de emoções que o seu avistamento geralmente propicia. 
Mas tal facto não é exactamente um reflexo natural, ao contrário do que muitos estão dispostos a acreditar.
Saindo desse espaço cultural, verificamos muitos exemplos pelo mundo fora em que tal bicharada desperta gula, deslumbramento estético e até veneração religiosa.

Os coleópteros da família Scarabaeidae, insectos comummente designados por escaravelhos, tendem a nos desagradar pelo seu hábito de se alimentar de excrementos e de animais em putrefacção.
Porém, um deles teve direito a entrar para o panteão de divindades do antigo egípcio, numa incarnação do deus Khefri, figura de importante papel naquela mitologia , já que era o responsável pelo o movimento do sol no céu.


Edwin L. Wisher, Coleópteros da família Scarabaeidae,
Julho de 1929
imagem obtida aqui


Abstraio-me por isso de preconceitos, e olho para imagem acima, de Edwin L Wisher, com deleite.
Vendo-a, consigo compreender perfeitamente o joalheiro russo Peter Carl Fabergé que, para além de fazer os seus famosos ovos de metais e pedras preciosas, muitas vezes se virou para o mundo dos artrópodes como fonte de beleza e de inspiração.


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segunda-feira, 3 de junho de 2013

A guerra dos significados

Há setenta e três anos, numa Europa em guerra, deu-se um importante acontecimento. O rápido avanço das tropas nazis cercou o contingente expedicionário britânico, e boa parte das tropas locais, no litoral do Norte de França.
Incapazes de reagir, de retomar a iniciativa, com tropas exaustas e sem meios, os britânicos decidiram-se pela retirada. Uma retirada improvisada, atabalhoada, em que tudo serviu para retirar gente da ratoeira que a região de Dunquerque se tornara. Mas, apesar de tudo, uma retirada feita com estoicismo, em que se lutou para não deixar ninguém para trás (ninguém que se conseguisse deslocar para as praias). Retirados os britânicos, foram também transportados os seus aliados: franceses, belgas, holandeses e até polacos.

O sucesso da retirada serviu para algo estranho, mas não inusitado. Converter uma tremenda derrota numa vitória. As guerras reais travam-se não apenas nos campos de batalha, mas também ao nível dos significados.

O ter sido capaz de retirar milhares de homens acossados em poucos quilómetros de praia, em poucos dias, recorrendo a qualquer coisa que flutuasse, de navios mercantes a iates de recreio, de barcos de pesca a couraçados, serviu para o comando britânico apresentar ali a marca da sua vitória. Dunquerque seria a prova do carácter e resolução britânicos.

E porque as imagens não são neutras, também elas foram convocadas para esta alquimia de transmutação de derrotas em vitórias.

Autor não identificado,
Soldados do British Royal Ulster Rifles 
a serem retirados de Dunquerque,
3 de Junho de 1940
imagem obtida aqui




Tropecei hoje nesta imagem da edição online do jornal inglês The Guardian.
Nela tudo se adequa ao discurso que foi construído acerca dos eventos de 1940. Nela nada se destaca em particular, nenhum soldado sobressaí. é uma imagem de um colectivo indefinido. Um colectivo que funciona sem pânicos, em condições muito adversas. A rugosidade da imagem faz adivinhar dificuldades, o tempo que era desagradável, o cansaço, a sujidade, a dureza. A História faz-nos saber que foram bem sucedidos estes homens. Cercados por uma força superior, souberam resistir, aguardar pela sua vez.

Mas as guerras têm dois lados (pelo menos). Uns dias depois, pelas praias da região de Dunquerque andou um alemão, Hugo Jaeger, que também fotografou a sua versão dos acontecimentos.

Hugo Jaeger, Praia perto de Dunquerque,
Junho de 1940, pormenor
imagem obtida aqui


A praia registada por Jaeger não é a praia dos heróis, dos que resistiram e dos que os vieram buscar, é a praia da derrota. Uma praia de veraneantes devolvida à normalidade pelas forças alemãs (vejam a senhora, que placidamente se senta na areia), e em que são ainda visíveis os traços de um fuga improvisada. É um território  pleno de despojos, de material deixado para trás. Uma praia vasculhada por cães, iconografia macabra dos derrotados em campos de batalha. 
A imagem de Jaeger é a imagem da humilhação britânica e francesa que enchia os peitos de Hitler e dos seus. E Hugo Jaeger era um deles, foi um dos poucos homens que tiveram a oportunidade de retratar a intimidade do ditador.

Hugo Jaeger, Praia perto de Dunquerque,
Junho de 1940, pormenor
imagem obtida aqui

As guerras de significados travam-se ao mesmo tempo das guerras de sangue, e a vitória nestas últimas determina normalmente a sorte das primeiras.
Hoje, a narrativa sobre Dunquerque que vingou é sem dúvida a que transparece na primeira imagem. Mas olhando para a praia de Jaeger podemos perceber que não era uma narrativa única. Existia o seu inverso, uma praia sem alquimias, sem redenções para um notório falhanço militar.

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